A tensão filosófica a respeito de propriedade mantida entre Hans-Hermann Hoppe e Max Stirner ilustra um dos dilemas mais profundos da história da filosofia.
Hoppe evidencia a autopropriedade por meio da ética argumentativa: qualquer tentativa de negá-la é uma contradição performativa, pois qualquer pessoa que, ao argumentar, nega ser dona-de-si demonstra, paradoxalmente, o exato oposto (controla suas próprias cordas vocais, sua boca, sua cabeça, seus braços, etc.).
Stirner é mais cru. Em nada lógica ou ética, a autopropriedade é revelada como um fato objetivo da realidade: você é dono-de-si na medida em que consegue autoafirmar-se como tal.
Para ambos, portanto, a autopropriedade denota uma “existência axiomática”. Trata-se de um ponto de partida inquestionável (não precisa ser provado), irrefutável (sua negação pressupõe sua validade) e independente da aceitação do pensador ou de terceiros.
O que concluem a partir daí, contudo, é uma profunda e aparentemente inconciliável dissonância conceitual.
Para Hoppe, a autopropriedade é o fio condutor de um sistema ético estruturado na coerência argumentativa.
Como a autopropriedade é inevitável, a propriedade privada - ou seja, a relação mantida entre o sujeito dono-de-si e o objeto de-seu-dono - surge como extensão lógica, pois tudo o que envolve seu corpo e sua ação submete-se, dedutivamente, à mesma premissa fundamental.
Para Stirner, no entanto, tratar a propriedade como um conceito ético ou lógico é uma cilada psíquica; um emaranhado de abstrações, ilusões mentais ou “fantasmas”; um sem-sentido mental que domina o sujeito às custas de sua verdadeira individualidade.
Para ele, propriedade é uma expressão de poder. Você possui algo (= é “dono”) apenas se pode fisicamente manter. Inexiste “justiça”, senão a pura capacidade material de garantir controle sobre aquilo que se deseja.
Isso significa que, enquanto Hoppe busca estruturar um sistema ético, estável e previsível, baseado na apropriação original e em contratos voluntários, Stirner dissolve qualquer fundamento normativo.
No mundo de Stirner, o conceito de propriedade privada existe enquanto o “eu proprietário” é forte o suficiente para assegurá-la.
Contratos não tem valor intrínseco, constituindo meras estratégias e/ou conveniências retóricas que auxiliam o dono a manter o status quo.
Em última instância, você só é dono de algo enquanto ninguém conseguir tomá-lo de você.
No de Hoppe, a propriedade privada deriva de uma cadeia lógica de legitimação: quem primeiro se apropria sem o uso de coerção tem o direito de reivindicar a coisa e de transferí-la voluntariamente (contratos).
Com isso, institui-se o alicerce civilizacional da prosperidade humana: um mínimo deontológico universal, intuitivo, não-contraditório e inexorável de resolução pacífica de conflitos.
Enquanto Hoppe tenta construir uma justificação descritiva para a ética (como se o PNA derivasse irrepreensivelmente do axioma da autopropriedade), Stirner expõe a hipocrisia de qualquer sistema normativo (prescrevem, mas não executam).
Divagando em planos distintos (Ser e Dever-Ser), as divergências entre Hoppe e Stirner parecem inconciliáveis. Lógica contra Matéria, Argumento contra Força, Ética contra Poder…
Essa celeuma traduz um problema gnosiológico central e foi abordada por David Hume no experimento conhecido como a “Guilhotina de Hume”.
Ele argumentou que é inválido derivar um “dever-ser” (ought) a partir de um “ser” (is), isto é, não se pode deduzir afirmações normativas (i.e. éticas) exclusivamente a partir de descrições factuais da realidade. Em síntese, para ele, fatos não geram valores.
No contexto da propriedade privada, isso significa que o fato de alguém possuir algo não implica ipso facto que ele deve (= tem o “direito” de), ou não, possuí-lo ou que ele pode (= tem o “direito” de) transferí-lo a terceiros.
Nesse sentido, ao se demonstrar que “cada indivíduo tem controle exclusivo sobre seu próprio corpo e mente (autopropriedade)” - um “ser” -, daí não se derivaria automaticamente uma regra no sentido de que “ninguém deve agredir outra pessoa e suas coisas” - um “dever-ser” -, pois isso evocaria um salto fantasioso; uma espécie de falácia naturalista (G. E. Moore).
Uma vez que não há um elo fenomenológico infalível entre as duas dimensões, a validação de sistemas proprietários exigiria a adesão a princípios normativos externos, dogmáticos e não-axiomáticos (direito natural, contrato social, norma hipotética fundamental, princípio da não agressão, etc.).
Ademais, a adesão descamba para experimentos puramente mentais (“ele roubou alguém, portanto violou o PNA”), demonstrando-se que sistemas proprietários tradicionais não são autoexecutáveis (algo como “dado que roubar é proibido, ninguém consegue roubar”).
Ao revelar-se como a convergência definitiva entre Ética (Lógica, Argumento…) e Poder (Matéria, Força…) e ao fundir, num único sistema, o “ser” e o “dever-ser”, o Bitcoin encerra um dos dilemas mais antigos da filosofia política e do direito.
Ele dissolve a Guilhotina de Hume porque não precisa prescrever normativamente a propriedade. Ele apenas é propriedade sem precisar de justificação ou mediadores externos.
“Ser dono” de bitcoins significa manter sob seu poder uma chave privada (uma sequência de 256 bits), traduzindo sua essência proprietária no plano do “ser”.
Chaves privadas são meras informações e, nesse sentido, extensões da consciência de quem as detém. Sabê-las é o suficiente para definir o “eu proprietário”, revelando uma espécie de extensão do primado da autopropriedade.
De modo que a preocupação do sujeito consciente, no plano do “ser”, decorre de um simples desafio: como guardar com segurança as chaves privadas e como transmití-las a terceiros?
Na medida em que “dono” é quem assegura - por força e/ou estratégia - a manutenção de chaves, trata-se, a rigor, de um conceito Stineriano de propriedade.
Como tal, qualquer um pode se apropriar de chaves privadas (e.g. “roubar”, “hackear”, etc.), dado que o sistema é tecnicamente indiferente ao modo pelo qual elas foram “adquiridas” (por apropriação original, por transferência voluntária ou por força e violência).
Por outro lado, no plano do “dever-ser”, o “dono” de chaves privadas, mesmo que não queira, subjuga-se a um conjunto inderrogável de premissas universais.
Em suas interações com o sistema, o “dono” é incapaz de subverter as regras do protocolo.
Ou seja: da condição de “proprietário” de chaves (“ser”, i.e, “axioma da autopropriedade”) é possível derivar regras inescapáveis de ação (“dever-ser”, i.e., “só pode se apropriar originalmente de fundos por mineração“, “só pode transferir fundos por meio de transações válidas”, “não pode ‘roubar’ fundos”, “não pode fraudar o estoque total de fundos”, etc.).
Por tal razão, o Bitcoin define e autoexecuta propriedade, revelando que seu “ser” e seu “dever-ser” constituem faces de uma mesma moeda (i.e. chave privada).
Nesse sentido, são dispensadas autoridades da ética e/ou da moral que fixam definições assintóticas da propriedade (dualidade entre “ser” e “dever-ser”), removendo a distinção entre propriedade “de fato” (Força…) e “de direito” (Ética…) e tornando irrelevante o debate entre jusnaturalismo e juspositivismo (de relevante só existe a “lei” matemática e autojustificada do protocolo).
Isso sugere duas conclusões possíveis:
a) Bitcoin = Propriedade = Autopropriedade: diante do princípio aristotélico da identidade (A=A=A), demonstra-se que a propriedade (=Bitcoin=Autopropriedade) só se assume como tal quando proveniente de um axioma, de modo que tudo aquilo que ordinariamente se denomina “propriedade” (sobre bens móveis, imóveis, coisas, etc.) é qualquer coisa, menos propriedade; ou
b) Bitcoin estabelece uma nova ontologia da propriedade: trata-se da forma mais pura de propriedade já concebida (“propriedade digital”). Sua engenhosidade revela que, antes dele, jamais havia sido inventado (ou descoberto) um sistema proprietário absoluto. Isso torna obsoleto tudo aquilo que, denominando-se “propriedade”, lhe antecedeu (aspirações ideais e promessas vãs).
De qualquer modo, na medida em que, com o Bitcoin, o “ser” já contém em si mesmo o “dever-ser”, Hume passou a estar errado, tornando obsoleto todo o pensamento clássico político, jurídico e da filosofia da moral.
Isso significa que o Bitcoin, enquanto sistema descentralizado estruturado em energia, matemática e consenso, fulminou completamente as noções tradicionais de justiça, legitimidade e direito.
Em outras palavras, o Bitcoin não é apenas uma tecnologia revolucionária ou um novo sistema financeiro – é o primeiro exemplo real de uma ordem proprietária pós-metafísica.
Bitcoin não é apenas uma moeda. Ele é a solução final para um problema filosófico milenar.
Bitcoin é uma ordem jurídica?
Que texto!! Sensacional, Paipe!!!